Por Sheila Salgado
Tenho 60 anos super bem vividos. Nesta jornada tive o prazer de me envolver profundamente com o movimento das pessoas com deficiência. Acho que é o capítulo mais intenso da minha vida. Durante o segundo grau, naquela época tínhamos que fazer um curso técnico profissionalizante e escolhi cursar enfermagem. Adorei tanto que quase estava decidida que seria minha escolha profissional. Nessa época gostava de esportes, animais e plantas, mas a minha paixão era cuidar e ensinar. Minha primeira experiência em cuidar foi com meus animais. Tive galo de briga sem bico, cachorro cego e sempre as pessoas me traziam os bichinhos que perderam algo para eu cuidar. Inventava soluções para facilitar a vida deles com a limitação.
Na enfermagem foi um sofrimento conhecer os bastidores dos hospitais e gostaria de esquecer este capítulo. Já desesperada sem saber que faculdade faria e então com 17 anos, resolvi ir à ABBR, onde funcionava a única Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro. Não sei exatamente o que aconteceu comigo, mas aquela visita despertou algo dentro de mim que passei a não ter mais dúvidas. Era ali que eu queria estudar e aprender a minha profissão. Após o tenso período do vestibular fui presenteada com a minha aprovação. Frequentar a Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro (ERRJ) era motivo de encantamento. E a cada dia eu me encantava mais. Convivíamos muito próximo dos pacientes da Escola Especial Marly Fróis e os vários dramas vividos eram transformados em experiências fantásticas.
Despertar político
O papel do esporte na minha vida
Comecei a trabalhar com esporte em cadeira de rodas através do CLAM. Na Sociedade Amigos dos Deficientes Físicos (SADEF), conheci José Gomes Blanco, Elaine e Maruf entre outros muitos amigos. Neste momento Celso Lima se tornou meu ídolo. Muito talentoso na música, tocava instrumentos de corda, teclado, além de percussão. Nessa época organizaram uma banda formada por pessoas com deficiência. Celso era o guitarrista e Reizinho ex-músico de Elis Regina, que havia se tornado hemiplégico, o baterista. Além disso, Celso jogava basquete e com sua ajuda comecei a me envolver com esporte de alto nível. Assim consegui, em 1981, acompanhar a seleção brasileira em Stoke Mandeville, onde fica a primeira Vila Olímpica de esportes para pessoas com lesão medular. Tudo era muito forte e intenso e foi com nessa mistura de emoções que Celso e eu nos apaixonamos e no espaço de um ano nos casamos.
Neste período cada vez mais encantada, eu mergulhava noite e dia nos estudos e na luta por pessoas que se acidentavam e assim acabei me especializando em lesão medular. Por 30 anos joguei-me profundamente nestas águas, conheci pessoas extraordinárias com lesão medular, profissionais maravilhosos de todos os cantos do mundo que militavam na minha área e atletas mais talentosos de todas as modalidades. Vivia numa intensidade absurda, o dia era muito curto para tantas coisas que pretendia abraçar. E meu casamento não suportou. Fui a várias edições dos Jogos Internacionais de Stoke Mandeville, Jogos Pan-Americanos, quatro Paraolimpíadas, ao Mundial de Basquete e incontáveis campeonatos brasileiros!
Acompanhei de perto a mudança fundamental da classificação médica para funcional no esporte em cadeira de rodas. Participei da primeira equipe internacional de classificação funcional com Dr Horst Strokendall, Bernard Courbariaux, Tip Thiboutot e Phill Craven. Foi sem dúvida, a grande mudança de paradigma e responsável pelo enorme desenvolvimento no movimento do esporte em cadeira de rodas no mundo. A partir desta mudança ex-atletas, educadores físicos, fisioterapeutas e médicos poderiam ser tornar classificadores, desde que conhecessem o esporte, a deficiência física e a mecânica do movimento em cadeira de rodas. Assim me tornei classificadora internacional de basquete nos Jogos Paraolímpicos de 1988 em Seoul. Nesta época já havia organizado a classificação do basquete da Associação Brasileira de Desporto em Cadeira de Rodas junto dos amigos José Blanco, Ary Bittar, Sandra Peres, Lia Stainberg e Raniero Bassi, Conheci os atletas com deficiência mais importantes do mundo e acompanhei de perto nascimento de alguns esportes como tênis e o quad rugby
Marcas da Infância
No final dos anos 90 tive uma experiência importante e surpreendente que vale a pena relatar. Participava do projeto de atualização de professores da rede municipal do Rio num curso de especialização em inclusão na Universidade Candido Mendes Preparava uma vivencia para minha aula sobre paralisia cerebral e adequação postural no ambiente escolar, quando resolvi desenvolver uma dinâmica para mobilizar os professores. Entretanto, antes de aplicá-la resolvi vivenciá-la. Não me lembro bem os passos, mas lembro o objetivo. Queria mostrar aos professores através de nossas lembranças escolares como estas experiências foram determinantes para nosso desenvolvimento pessoal e profissional. Como somos marcados tanto pelas experiências reveladoras e encantadoras como por aquelas que nos traumatizaram profundamente. Era uma simples viagem no momento que chegamos à escola, nosso primeiro convívio social. Eu orientava lentamente até o momento que encerramos o ensino fundamental. Depois íamos listar estas memórias em duas colunas, o que mais marcou pelo afeto positivo e a outra coluna pelo afeto negativo.
Fui surpreendida quando encontrei no meu baú de memórias, experiências tão naturais que haviam definido os passos de minha vida. Fui para escola com 6 ou 7 anos e na alfabetização estudei com Serginho, meu amigo com síndrome de Down. Ele era filho da minha amada professora D. Jacira. Na turma ao lado conheci Ana Cristina, sobrinha de D. Jacira com paralisia cerebral. Era irmã de Jacy meu amigo de turma e de coração. Ana lutou 20 anos para receber seu diploma de professora. O fato de digitar com a língua, que por sinal me encantava, sob a ótica de alguns lembrava obscenidade. Escreveu um livro com o inteligente título Ana Alfa Beta. Estudei também com Renato que tinha seqüela de pólio em uma das pernas. Sempre achei incrível ele jogar futebol segurando o joelho para manter a perna estendida.
Depois fui para o Grupo Escolar Pinto Lima, onde nos fundos funcionava a Escola Especial Anne Sulliver. Um colégio para crianças surdas e com deficiência intelectual. Eu adorava quando um aluno da Anne Sulliver escapava e entrava na minha sala de aula. Embora os dois prédios fossem juntos e com uma única entrada, os diferentes horários de entrada, recreio e saída não facilitavam o encontro dos alunos. Mesmo que eu tivesse um desejo enorme de ir para o outro prédio, não era permitido. Nesta escola tinha também uma professora da 1ª série, D. Emilse, que também tinha sequela de pólio em uma das pernas. Eu achava o máximo aquela professora ser como meu amigo Renato. Infelizmente entrei na segunda série e nunca fui sua aluna.
No Ginásio Colégio Brasil, toquei na banda com Nelsinho que tinha um tique nervoso muito intenso que assustava as pessoas. Joguei vôlei e fui reserva de Luciene, nossa fantástica levantadora que não tinha nenhum dedo nas mãos, como consequência de uma queimadura. Em1961 houve um incêndio terrível num circo em Niterói e estudei com vários sequelados deste acidente. Minha irmã Tereza, hoje professora, estudou com Fernanda que era cega. Eram amigas e Tereza, lá em casa, fazia os números, as formas e os mapas em relevo para ajudar Fernanda.
E foi assim, neste exercício simples para despertar nos professores nosso importante papel na construção da personalidade da criança que descobri a raiz da minha paixão e a naturalidade em ouvir e facilitar o que o outro precisa para vir a Ser o que ele É. Desde esse dia não tive mais dúvida que este processo de inclusão é o caminho. Não tem mais volta, não tem governo capaz de frear nossa luta por um direito inerente a todos. O convívio com a diversidade nos fortalece e nos torna seres mais humanos. Este é um caminho sem volta, cada dia tem mais gente desperta para se juntar a luta que é de todos.
Quando minha filha entrou no Espaço Aberto, uma linda escola construtivista há 17 anos, fui surpreendida na primeira reunião de pais. A ajudante do Jardim 2, Mariana, uma linda jovem, desembaraçada e alegre tinha Síndrome de Down. Minha filha estudou com amigos surdo, cego e outras síndromes diferentes. Dançou com Brenda também com síndrome de Down e jogou futebol com Caio também surdo. Assim a vida segue me presenteando e para encerrar esta história deixo com vocês uma linda reflexão de Boaventura Souza Santos.
“Temos o direito de ser iguais quando nossa diferença nos inferioriza e temos o direito de ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza”.