Desde os últimos acontecimentos que marcaram tragicamente o Rio de Janeiro, com o massacre ocorrido na Escola Tasso da Silveira em Realengo, venho acompanhando o noticiário, me deixando levar pela emoção, sem fugir da enorme dor que tudo isto traz, ao imaginar o terror que acompanhou aquelas crianças e professores diante da fúria de um real perseguidor, e ao vivenciar, mesmo que por empatia, o sofrimento dos familiares e amigos envolvidos pela perda de entes queridos, todos eles crianças e jovens.
A perplexidade é geral, com as questões que surgem em nossas cabeças: por que tudo isto? Como explicar um ato desta natureza? Como entender a extensão desta tragédia atingindo crianças e jovens que, numa idade em que estão despontando para a vida, repentinamente são ceifadas de modo tão brutal?
São perguntas, a meu ver, sem respostas imediatas, mas que, pelo absurdo que o fato gera em nossas mentes e corações, nos impulsiona a reflexões que tentam de alguma forma dar forma e estrutura ao incompreensível e assustador.
O texto de Cacá Diegues “O Horror da Diferença”, publicado no jornal O GLOBO do dia 9 de abril, abre uma frente lúcida de debate sobre o episódio em questão, situando-o como elemento revelador de circunstâncias que o antecedem e que estão na base de conflitos, gerados, como ovos de serpente, dentro de nossos relacionamentos humanos e sociais. E que são universais! Cita a enorme dificuldade do ser humano em aceitar e conviver com a diferença, seja ela qual for, e que implica na idéia de um “Outro”, diferente de nós. Enfatiza, frente ao que foi publicado sobre Wellington, a distinção que ele faz, no início de sua carta, entre puros e impuros, assinalando, em princípio, sua visão de que “os outros” são os impuros dos quais ele quer se proteger. Mais adiante, num trecho que traduz a consciência e o desejo da própria morte, Wellington reforça esta visão, afirmando que seu corpo precisa ser envolvido em lençóis para se proteger de mãos impuras.
O texto belíssimo de Cacá Diegues prossegue, fazendo considerações sobre “nossa incapacidade de suportar a diferença”, que vem gerando uma série de intolerâncias, sejam elas religiosas, étnicas, de gênero ou de opção sexual, marcando episódios sangrentos e verdadeiros genocídios que envolveram e envolvem a história recente e antiga da humanidade.
Sem desejar fazer um perfil psicológico do assassino, o que seria dar explicações ao inexplicável, e justificativas ao injustificável, pretendo apenas assinalar alguns fatos que cercam a vida do também jovem Wellington, para entrar na questão da “diferença” como um forte fator que predispõe à violência e à intolerância, sendo também forma de violência para aqueles que sofrem as ações da intolerância.
Alguns fatos, revelados por companheiros do período escolar de Wellington e publicados nos jornais, são marcantes para a visão de um jovem, que desde a infância, foi marcado pela idéia de ser “esquisito”, em função do uso de roupas inapropriadas, tornando-o estranho aos olhos dos outros; de fazer uso de óculos “fundo de garrafa”, e ter comportamento reservado e silencioso, a ponto dos outros interpretarem sua atitude como de covardia, ao não reagir aos comentários irônicos e agressivos de seus colegas de escola. Era chamado de “suingue”, por mancar de uma perna. E fazia-se acompanhar de outro menino também “estranho” por sua aparência afeminada, pelo que eram tratados de “casal”, ou “gays”. As meninas, principalmente as mais bonitas da turma, eram estimuladas pelos colegas a provocar Wellington, seduzindo-o para ele ser ridicularizado.
Acho que esta descrição é suficiente para revelar que Wellington era alvo de bullying na escola, um comportamento que sempre existiu e que atualmente vem recebendo o destaque que merece para a implementação de ações que possam atuar decisivamente no espaço escolar para sua compreensão e erradicação
A reflexão desses fatos nos leva a considerar exatamente nossa dificuldade ou incapacidade em aceitar a diferença que está em toda a parte, colocando sempre no outro a falta que, em princípio, a diferença suscita, e que, defensivamente, não está em nós, para alívio de nossas impurezas ou imperfeições. Esta é uma idéia secular, que coloca o sujeito, grupo, sociedade ou nação com uma verdade absoluta, que se distancia do outro, enquanto indivíduo, grupo ou nação, para o qual é imputada a noção de impureza ou imperfeição. São inúmeros os exemplos que podemos levantar em nossa história e que falam da intolerância em aceitar as diferenças, como no caso do nazismo, fascismo ou demais sistemas políticos autoritários.
O filme Avatar, exibido recentemente, apesar de todo o fascínio criado por uma tecnologia de ponta e pela concepção de seres humanos convertidos a uma dimensão idealizada, provocou em mim indagações sobre o que estaria ali embutido e que eu já não teria visto (dejà vu) e assistido em outros filmes, até mesmo naqueles em que, durante minha infância, inundaram meu imaginário com sensações de entusiasmo e vibração ante cenas em que o “bandido” era sempre vencido pelo “mocinho”. Eram os filmes de western da época, em que os “bandidos” eram sempre os índios selvagens, que estavam sendo gloriosamente enfrentados e dizimados pelos conquistadores civilizados. Eu vi esta mesma concepção no filme Avatar, onde os seres de um mundo idealizado, no fundo não passavam de pessoas primitivas, precisando ser dominadas por seres mais civilizados e, portanto, superiores, nem que fosse de um modo destrutivo. Isto nos parece tão familiar quando vemos que o cinema americano, na época em que precisava atingir o Brasil em sua campanha de aproximação para fins bélicos, na segunda guerra mundial, tratava os personagens brasileiros como simpáticos, mas profundamente exóticos. Estão aí os filmes de Carmen Miranda para mostrar esta realidade, trazendo o Zé Carioca na bagagem.
Há, portanto, uma forte tendência em aproximar o que é bom ao que nos é conhecido e próximo de nossos sentimentos, valores e crenças, e colocar o mau, o que é indigno e imperfeito no que se diferencia de nós, causando apreciações que se fazem de modo muito simplista e discriminatório.
Neste sentido, eu chamaria a atenção para aquilo que nós, do CVI-Rio, temos discutido amplamente, levando para nossos seminários, debates, jornadas e congressos a questão da diversidade humana, assinalando que as deficiências, de um modo geral, servem de paradígma perfeito para marcar a diversidade que existe entre nós, seres humanos. Defendemos a cultura da inclusão que sofre, ao mesmo tempo, uma das maiores resistências por parte daqueles que, ou não querem abrir mão de valores que sustentam seus interesses, ou que não querem vencer suas próprias dificuldades no sentido de dar existência a um “outro”, com seus desejos, sentimentos e valores diferenciados.
A consciência deste outro, com a resultante imediata do reconhecimento de um outro que precisa ser respeitado e considerado dentro das diferenças que o constituem, representa um ato que mais demanda maturidade e consciência das pessoas em seus relacionamentos humanos. Daí, talvez, ser tão difícil alcançar este ideal.
Mas fatos como o que estamos vivendo no momento, nos remetem e nos obrigam forçosamente a uma posição de responsabilidade frente a este desafio por uma mudança. A começar pelo núcleo familiar, onde as primeiras relações de uma criança se processam, sendo formador de estruturas psíquicas básicas que serão expandidas dentro do espaço escolar e por outros espaços cada vez mais amplos, marcando o desenvolvimento do ser humano em geral.
Temos, cada vez mais intensamente, que dar melhores condições para que as famílias possam preparar-se para cumprir sua importante missão de formar pessoas bem estruturadas psiquicamente, com valores que comecem a desarmar as defesas em relação à diversidade humana. E que a Escola possa acompanhar este movimento, abrindo-se como aliada das famílias, para construir dentro do ambiente escolar um espaço de discussão e enfrentamento dos conflitos existentes entre os alunos, conflitos que precisam receber uma escuta, para sua verbalização, conscientização e resolução. E é também neste espaço de construção de cidadania que devem ser marcados valores que ressaltem a existência de um “outro” que se distingue de cada um de nós, marcando com sua diferença um espaço social mais rico e plural pelo que introduz de desafios e mudanças inovadoras.
Esta compreensão, demandando investimentos de toda ordem, inclusive os que implicam em custos financeiros para as instituições envolvidas, é amplamente justificada se a resultante for a construção de relações mais humanizadas, com a conseqüente redução de vínculos que degradem o ser humano como um todo.
Por Lilia Martins