Por que somos invisíveis?

Este texto teve origem na minha fala no Evento “Diálogos Mulheres em Movimento – Da invisibilidade a transversalidade”, ocorrido no dia 07/03/2018, no Teatro Cacilda Becker, RJ. O convite partiu do CVI Rio, que promoveu o Evento em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. Minha Mesa tratou do tema, “Corpo e Identidade do feminino”. Entretanto não me prendi a questão de gênero. Suscitei a partir de um olhar psicanalítico, algumas questões que julgo pertinentes a respeito da invisibilidade social das pessoas com deficiência.

Embora vivamos em sociedade, dentro de uma determinada cultura e consequentemente afetados por tudo o que nos cerca, não perdemos com isso a nossa singularidade. Vemos o mundo cada qual com a sua própria lente, e a psicanálise é uma ciência/arte que desperta e faz o sujeito responsabilizar-se pelo seu destino, por sua forma única de estar no mundo, e principalmente pelo seu desejo.

No final do século XIX, Freud constata que todas as neuroses tem um conteúdo sexual e que diferentemente do que acreditou num primeiro momento, os fatos geradores do aparecimento das neuroses, não necessariamente ocorriam na realidade, mas estavam relacionados às fantasias. Tal constatação faz Freud passar da sua Teoria do Trauma para a Teoria da Fantasia ainda em 1897, levando-o posteriormente à elaboração do Complexo de Édipo. E é sobre a questão da fantasia que eu quero falar, mas me permitam fazer uma digressão.

O bebe humano diferente dos outros animais nasce completamente desprotegido. Ele precisa ser amparado por aqueles que desempenham o papel de pais, pois caso contrário ele não sobrevive. Ele nasce também no discurso do Outro, do desejo do Outro. Quando o bebe nasce ele já tem um lugar no mundo, não só social, pois ele é fruto de uma determinada época, de uma determinada cultura, mas antes de tudo ele é falado. Vai ser menino, vai ser menina, vai se chamar x conforme a avó e por assim em diante. Mas isso só não basta. Diferentemente dos animais, ao entrarmos na cultura, perdermos nossos instintos e passamos a ser seres pulsionais. O instinto garante ao animal a certeza de que há um objeto para cada uma de suas necessidades. Assim, para a fome a comida, para a sede água e etc. Com o ser falante é diferente. A pulsão clama por saciedade o tempo todo, mas essa satisfação é sempre parcial e os objetos para lhes satisfazer são inúmeros. Já diz o poeta, “você tem fome de que”?

Assim, o banho de linguagem que marca simbolicamente o sujeito, não dá conta de tudo. Há sempre uma falta como nos dizia Lacan ou como antes nos ensinou Freud, estamos todos submetidos à castração. Só podemos desejar porque algo nos falta. Quando nascemos, só temos uma única certeza, que temos prazo de validade, que somos seres finitos.

Entretanto o que nos falta não sabemos e é aí que entra a fantasia, como um véu que deforma a realidade e que nos possibilita fazer laços sociais, de uma forma absolutamente singular. Como não sabemos o que nos falta e como muito menos sabemos o que o Outro quer de nós, fantasiamos a partir das marcas que nos são dadas, mesmo antes de nascermos, como falei anteriormente. Experimente pedir para um grupo de pessoas que assistiram juntas a um determinado fato para relatar o ocorrido. Você verá que cada qual vai fazer o seu relato sob um determinado ângulo, sendo difícil por vezes acreditar que realmente estivessem juntos quando o fato se deu.

Voltando a Freud, e agora já em 1930, ocasião da publicação de seu livro, “O Mal Estar na Cultura”, ele vai demonstrar que embora seja o princípio do prazer que vai estabelecer a finalidade da vida, que é ele que domina o aparelho psíquico desde o inicio, esse princípio se encontra em desacordo com o macro e o microcosmo. Diz Freud: “podemos dizer que a intenção de que o homem seja “feliz” não se acha no plano da Criação“. E continua dizendo, que a felicidade é sempre esporádica.

Para Freud três razões impedem ao homem de ser feliz. A primeira delas é o padecimento inerente ao corpo físico, a segunda é que não é possível controlar os desastres naturais, fonte de destruição e sofrimento para todos, e a terceira é a inadequação para lidar com as regras impostas para regular a convivência humana na família no Estado e na Sociedade, ou melhor dizendo o problema é o Outro.

Mas para as duas primeiras razões de mal-estar, ou seja, o padecimento do corpo e o controle da natureza, o homem cria a ciência. Se por um lado devemos comemorar as boas novas que a ciência nos trás, pois, é inegável, que muita dor e sofrimento são evitados graças aos avanços científicos, por outro lado, esse cientificismo tende a não ouvir o sujeito, atendendo a todos as suas demandas sem escutar o que está por trás daquele “sofrimento”.

Aqui me socorro do livro, “O intolerável peso da feiura”*, onde a autora analisa o discurso corrente reproduzido pelas pessoas que foram por ela entrevistadas a respeito de cirurgias plásticas e emagrecimento. Segundo Vilhena, o discurso recorrente é o de que: “só é gordo quem quer”, ou “só é feio quem não se cuida”. É como se a ciência estivesse aí pra dar ao sujeito meios de apagar a sua falta, a sua diferença. Como se fosse possível, num mundo científico almejado não existir castração. Logo, se a pessoa continua gorda, feia, velha é porque quer e como é angustiante se defrontar com a castração que é inerente a condição humana, essas pessoas devem ser alijadas, e não o sendo serão objeto de chacotas.

E como se comportar frente à deficiência?  Por mais que a ciência avance, ainda não é possível eliminar a marca real sobre o corpo das pessoas com deficiência. Esses corpos são marcados de forma mais radical pela falta, lembrando a todos sua perenidade. Diferentemente daqueles que “dispõem” de uma infinidade de recursos para driblar essa falta, com a deficiência isso não pode ser assim. A cadeira de rodas aparece, a falta de visão ou audição não pode ser maquiada.  Como então lidar com as pessoas que trazem como brasa em seus corpos os efeitos dessa falta? Como lidar com a angústia de poder remotamente ver em seu próprio corpo essa marca, já que uma deficiência permanente pode acometer a qualquer um em qualquer momento de sua vida. Podemos dizer que a deficiência é democrática, não escolhe raça, gênero, classe social. Pode estar na próxima esquina.

Qual o recurso então para se lidar com esse incomodo? Penso que tornando as pessoas com deficiência invisíveis socialmente. Nada como um dito popular para elucidar o óbvio: “o que os olhos não veem o coração não sente”. Dispensa-se a esse segmento, o que eu classifico como uma invisibilidade respeitosa.

Diferentemente das pessoas qualificadas como fora da norma social, que são geralmente objeto de deboche ou até de ódio, há certa deferência para com as pessoas com deficiência. Essa deferência é tamanha, que se criam neologismo para falar dela. Passamos a ser “pessoas especiais” ou “pessoas que têm necessidades especiais”. Costumamos ouvir: “Fulano tem um filho especial”. Ora, algum filho não é especial para cada pai ou mãe? Ou de forma a negar radicalmente a diferença, aliam aos feitos das pessoas com deficiência o significante SUPERAÇÃO. Sim, não há matéria em qualquer tipo de mídia que ao descrever desde as coisas mais simples as mais fantásticas realizadas por quem tem uma deficiência, que não as classifiquem como um ato de superação.

Superar que ação, pergunto eu? Da castração? Não, não superamos essa ação, primeiro porque ela é estrutural e segundo porque sem a falta não há desejo. Somos assim obrigados a lidar singularmente com os efeitos dessa marca a mais que trazemos em nossos corpos.

Agimos como o turista que comprou um pacote para um lugar de praia, só que o tempo não colaborou e ao invés de sol o tempo fechou. O que fazer? Desistir da viagem? É um direito do viajante. Reclamar da falta de sorte? Também é possível. Mas pode-se ainda aproveitar para curtir outras possibilidades que não a programada. Lacan chamava isso de “saber fazer com a falta” ou savoir faire.

E entre “especial” e “deficiência”, fico então com o segundo significante, porque na (d)eficiência, comporta a eficiência, e eficiência é justamente a capacidade de realizar tarefas ou trabalhos de modo eficaz e com o mínimo. Fazemos isso? Nem sempre, mas acho que tentamos.

Por Maria Paula Teperino – Psicanalista – Março de 2018

* “O intolerável peso da feiura – Sobre as mulheres e seus corpos” – Joana de Vilhena Novaes – Editora PUC RIO.