Por Lilia Pinto Martins
Uma das primeiras cenas do filme, coloca abruptamente o espectador dentro da realidade em que vive o personagem, mostrando um quarto na penumbra com total destaque para o respirador automático em que Mark se encontra, tentando conciliar o sono, e onde a única presença é a de um gato que passeia livremente pelo quarto, sob o olhar de Mark, que a esta altura tenta concentrar-se mentalmente para não sentir a coceira que experimenta.
Sensação? Total solidão e completa dependência de um aparelho que, em sua semelhança a um túmulo, ao mesmo tempo representa o sopro de vida que permite ao personagem viver sua vida como escritor e poeta.
Associo imediatamente a tetraplegia de Mark a esta idéia de morte que está contida em tantas interpretações e vivências sobre a deficiência e que se revela neste respirador de aço, ao mesmo tempo tão aprisionante, mas potencialmente impulsionador de vida como o personagem revela, não só em sua busca pelo prazer sexual, antes não experimentado, mas também por sua figura perspicaz, sensível e cativante, além de sua produção literária.
Católico praticante, Mark vai buscar na pessoa do padre de sua igreja o aliado de que precisa para falar de seu desejo. A princípio, relutante em aceitar a demanda de seu interlocutor, o padre refugia-se em suas defesas, até porque, curvando-se ao dogma do celibato, mostra ter questões relevantes com a própria sexualidade, Mas, aos poucos, a figura envolvente de Mark vai desfazendo suas defesas, permitindo que deixe vir à tona a pessoa progressista que é. Ele acompanha todo o processo de Mark, respeitando e compreendendo suas opções. No fundo, vem a representar a figura terapêutica que dá suporte à experiência até seu encerramento.
Seguindo indicações, Mark chega à pessoa de Cheryl, terapeuta sexual. Ela surge como a profissional competente, colocando-se acima de quaisquer riscos e aceitando participar inteiramente da demanda do cliente, obedecendo a determinadas regras que são colocadas no contrato terapêutico. Os limites são demarcados, sem, no entanto, restringir ou aprisionar os desejos.
De que maneira entender a atuação de Cheryl? Ela mesma desfaz qualquer comparação com a figura de uma prostituta. Mas é inegável associá-la a uma mulher extremamente corajosa, desafiando preconceitos, desfazendo mitos e compartilhando com transparência sua atuação profissional, mesmo dentro do contexto familiar.
Sua generosidade, podíamos interpretar desse modo, acaba sendo transmitida pela maneira como vai oferecendo e emprestando seu corpo para que o outro, na figura de Mark, vá experimentando prazer pela descoberta de um corpo de mulher, antes desconhecido.
Aos primeiros contatos, Mark reage com dor à manipulação de seu corpo, como se profundamente tocado pelo risco de uma experiência desparalisante a desafiá-lo. Ao mesmo tempo, vai descobrindo o prazer em seu próprio corpo, pelos toques e carícias que recebe. Ela o estimula a sentir seu corpo, dando-lhe vida e existência, e ele se empodera da idéia de que é capaz de dar prazer, a despeito de um corpo marcado por severas limitações e deformidades.
Até um certo ponto, Cheryl mostra um controle sobre a situação, aceitando as propostas de Mark, mas mantendo um domínio sobre a cena, domínio que se traduz pela maneira como dispõe seu corpo, vivenciado quase que como um objeto estranho a si mesma. A certa altura, sente-se apreensiva quando percebe a transferência afetiva de Mark a sua pessoa, sinalizando uma situação que pode fugir a seu controle. Ela também vai-se sensibilizando na relação com Mark, com o aparecimento de emoções que não estavam na ordem do dia. O inesperado acontece e uma das cenas fortes do filme é quando Mark encaminha a Cheryl, por carta, um de seus poemas e seu marido intercepta a correspondência, jogando a carta no lixo. Instala-se uma nova configuração na relação do casal, com o desencadeamento de conflitos pela acusação de uma invasão de privacidade. Durante a noite, Cheryl recupera a carta, com o poema de Mark e mostra-se sensibilizada. O que antes estava fora, ganha uma dimensão diferente, ao mostrar o momento em que Cheryl deixa-se atingir e tocar pela emoção.
Na sessão em que o acordado era a vivência de um orgasmo simultâneo, ambos conseguem êxito e Cheryl admite ter experimentado um orgasmo, assim como reforça que Mark também chegou a um orgasmo completo. Os dois sentem-se lançados numa experiência nova para ambos, e de imediato Cheryl propõe o fim do contrato, antes mesmo do prazo combinado. Ele, parecendo fortalecido, aceita a proposta e os dois interrompem a relação.
Mas a experiência iniciada naquele contexto, continua-se em relação a uma outra mulher, conhecida posteriormente no hospital em que Mark é socorrido por conta de um incidente com o respirador, onde quase morre por asfixia. Não fica evidenciada uma relação amorosa em termos convencionais, mas sim uma relação que se constrói numa base afetiva, pelo muito que uma pessoa como Mark é capaz de despertar no outro por sua capacidade de envolver e provocar emoções, desejos e interesses, mesmo que dentro de um corpo com limitações severas, marcando, em princípio, um limite para a atração, para o envolvimento.
Há, portanto, uma química que se sobrepõe ao que convencionalmente é pensado em termos de um relacionamento afetivo-sexual entre homens e mulheres, fazendo-nos pensar que existem mais mistérios do que supomos. São inúmeras as maneiras como uma pessoa pode se oferecer a outra, para colocar-se como pólo de interesse para o outro, pontuando como as diferenças entre as pessoas, por mais pregnantes que sejam, podem não representar limites para uma relação acontecer, do modo como elas podem ser. E de que maneira avaliar a importância e o significado de cada uma delas a não ser pelo que as pessoas envolvidas estão vivendo, retirando o que for possível de satisfação e prazer, mesmo que não seja o que se convencionou de ideal?
A meu ver, Mark encontrou o que buscava em sua relação com Cheryl, que foi mais intensa do que à primeira vista poderia parecer. E retirando o que foi possível, e sentindo-se fortalecido com o que encontrou para si mesmo e pode oferecer a Cheryl, como representante das mulheres antes desconhecidas. Mark seguiu sua vida, não se sentindo talvez tão mais virgem para as experiências humanas. Algo foi impregnado a ele, assim como ele impregnou Cheryl de algum modo: a vida passou a não ser mais a mesma para ambos. Cada um levou o que pode representar e significar para si.
Como isto se deu? A meu ver, a vida, mesma na diferença, pode se dar de muitas maneiras imprevistas, mais pela força dos vínculos que crescem envolvendo as pessoas (não importa de que natureza sejam), do que por circunstâncias que cercam o que é mais externo a nós.