Quebrar barreiras físicas e de preconceitos e propiciar o usufruto do direito à cultura e a inclusão de pessoas com deficiência. Para a professora Renata Silencio, esse foi o legado que o curso de Especialização em Acessibilidade Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) deixou para ela e seus colegas de turma.
Formada pela primeira turma do curso, realizado em 2013 em parceria com o Ministério da Cultura (MinC), Renata – que é professora do Bacharelado em Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) – conta que, assim como ela, outros colegas conseguiram aplicar o conhecimento adquirido no curso em seu trabalho na área cultural e disseminar o conceito de inclusão em diferentes locais.
“Eu sabia que tinha possibilidades para a acessibilidade na cultura, mas não sabia o tamanho disso. O curso me aproximou do tema e eu consegui introduzir no bacharelado (da IFRJ, onde trabalha) a disciplina optativa de acessibilidade cultural, no campus Nilópolis”, conta Renata. “O levantamento que fiz com as duas turmas (de 2015) mostrou que eles começaram a enxergar com outros olhos as relações de autonomia, tanto para o consumidor quanto para o próprio artista, integrando-os de forma autônoma. Eles saíram mais questionadores em relação à estrutura da cidade, pois não temos uma arquitetura universal”, completa.
Na avaliação de Renata, a disciplina proporcionou novas formas de pensar projetos culturais inclusivos e de quebrar barreiras atitudinais. “Quebramos as barreiras que estão dentro do estranhamento, do não saber como lidar, do preconceito. Quando isso se quebra, é preciso apenas agir de uma determinada forma que, com adaptações, a pessoa consegue executar as tarefas, usufruir ou ter o máximo de aproximação com a obra de arte como uma pessoa que não tem deficiência. Assim, a gente consegue o mais importante: incluir”, argumentou.
A busca pela inclusão é luta de quase três décadas da bailarina Beth Caetano, que trabalha nesse mesmo período no Centro de Vida Independente (CVI) do Rio de Janeiro. Um acidente de carro em 1984 a levou a usar cadeira de rodas.
Da mesma turma de Renata, Beth conta que seus colegas puderam aprender muito com a experiência dela por realmente precisar utilizar produtos e serviços adaptados. “Foi muito bacana poder trocar informações, ouvir as pessoas. A maioria gostou muito, ficou bem mexida, mobilizada e cada um em sua área começou a aplicar. A gente continua fazendo parte das redes. Tem um grupo de pessoas que se articulam para fazer encontros nacionais”, conta.Vida Independente (CVI) do Rio de Janeiro. Um acidente de carro em 1984 a levou a usar cadeira de rodas.
A bailarina destaca que, na prática, para quem usa cadeira de rodas, a questão da acessibilidade tem de ser pensada não apenas para cumprir normas, mas para permitir a liberdade. “Num equipamento cultural, a minha maior barreira arquitetônica é a mobilidade. Quem tem tetraplegia, como eu, a mobilidade é atingida. Você tem que entrar no edifício com rampa ou elevador, ter acesso a um banheiro acessível. Não adianta colocar espaço na frente do cinema, porque dói o pescoço de ficar na frente da tela ou em um lugar muito separado. Se você sai, você quer sociabilizar, ficar segregado numa área restrita onde não se está sociabilizando não é legal”, afirma.
Beth conta, ainda, que o acesso aos camarins e aos palcos de teatro também são, em geral, complicados, porque não foram construídos com a ideia de receberam artistas cadeirantes. “Teatro, quando é de arena, com o palco no mesmo nível do chão, é ótimo, mas a maioria possui uma rampa muito íngreme, feita para transformar a escada. Para respeitar a regra, você não pode esquecer o bom senso”. Hoje em dia, ela já pode dispor de táxi especial e transporte público (ainda que pouco) para atender pessoas com as mesmas necessidades dela. No entanto, a postura e a atitude ainda precisam ser mais bem trabalhadas. “Melhora se o público compreender que o sujeito é um artista, que ensaia e tem todo o trabalho, como qualquer outro, e tem a preocupação com a qualidade do que vai oferecer ao público. Não é (necessariamente) uma atitude associada à superação, à terapia”, avalia.
Para quem tem deficiência auditiva ou visual, se faz necessário, nesses equipamentos culturais, guias em áudio, maquetes e objetos táteis que permitam que o visitante possa sentir o que está sendo apresentado, seja uma peça de teatro ou uma exposição de arte. Os museus, segundo Beth Caetano, já adotaram muitas dessas ações.
Financiado pelo MinC, o curso de Especialização em Acessibilidade Cultural teve duas edições: uma em 2013 e outra em 2015, ainda em fase de conclusão. O público-alvo eram gestores públicos, organizações da sociedade civil e professores. “A proposta era sensibilizar os alunos para a implementação de uma cultura de projetos e políticas culturais incluindo as pessoas com deficiência”, resume coordenadora do curso, Patricia Dorneles.
Acessibilidade em Pontos de Cultura
Patricia também está envolvida com outra iniciativa da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC) do MinC que tem como objetivo de mapear, por todo o País, a acessibilidade disponível nos Pontos de Cultura (entidades sem fins lucrativos, grupos ou coletivos que desenvolvam e articulem atividades culturais em suas comunidades).
“A partir dessas informações, teremos um panorama do que é preciso fazer em termos de políticas públicas. Aqui em nossa instituição, temos rampa de acesso, banheiro adaptado, mas o que mais fortaleceu a questão da acessibilidade foi o trabalho de formação de educadores”, afirma Dilma Negreiros, gestora do Ponto de Cultura CIEMH2, que também se formou na primeira turma do curso de acessibilidade e, atualmente, faz mestrado em uma universidade de Portugal sobre o tema.
Políticas do MinC
A atenção à dimensão cidadã da cultura como direito básico é um dos eixos que norteiam a construção de políticas do MinC, além dos aspectos simbólico e econômico. A afirmação desses direitos na promoção da acessibilidade cultural vem conduzindo uma série de ações, planos e programas envolvendo os diferentes setores do Ministério, os quais permitiram mais acesso a acervos, exposições, livros, filmes e espetáculos, além de dar autonomia aos indivíduos em respeito à sua diversidade e complexidade. Conheça abaixo algumas delas:
Nos últimos 10 anos, os projetos aprovados pelo MinC para captar recursos por meio da Lei Rouanet tiveram de cumprir com algum tipo de requisito que contemplasse a acessibilidade como a garantia de espaço reservado para pessoas com deficiência para assistirem a espetáculos e uso de Libras (Língua Brasileira de Sinais), por exemplo.
No campo audiovisual, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), entidade vinculada ao MinC, possui, desde dezembro de 2014, norma que estabelece que todos os projetos de produção audiovisual financiados com recursos públicos federais geridos pela agência deverão contemplar nos seus orçamentos serviços de legendagem descritiva, audiodescrição e Libras. Além disso, cada um deles deverá encaminhar uma cópia com formato acessível para a Cinemateca Brasileira, que vem paulatinamente aumentando seu acervo inclusivo.
Da mesma forma, a Secretaria do Audiovisual (SAv) do MinC assumiu, desde o ano passado, o compromisso de inserir em seus editais a obrigatoriedade de inclusão de ferramentas de acessibilidade. Os atuais três editais em aberto da secretaria para produções de baixo orçamento incluem tais regras.
Ainda no primeiro semestre deste ano, a SAv deverá lançar o Guia de Produção Audiovisual, documento que servirá de referência para realizadores do audiovisual no Brasil, ao abordar temas como o uso de audiodescrição, legenda para surdos e Libras.
Mais livros e bibliotecas mais preparadas
Em novembro do ano passado, depois de forte atuação da Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC no Congresso Nacional, parlamentares aprovaram a adesão do Brasil ao Tratado de Marraqueche. As nações participantes se comprometem a criar dispositivos legais para que obras, tais como livros e outros materiais, possam ser reproduzidas e distribuídas em formatos acessíveis, como Braille, Daisy ou mesmo em audiolivro, sem a necessidade de autorização do titular de direitos autorais.
Promulgado pela presidenta Dilma Rousseff, que encaminhou a carta de ratificação à Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), o tratado visa facilitar o acesso de pessoas com deficiência visual a obras literárias.
No Brasil, com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de 2015), já se prevê a reprodução de obras em formato acessível para pessoas com deficiência. A legislação também estipula que deverá ser garantido o acesso, em formato acessível, a bens culturais, programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas, monumentos e locais de importância cultural e espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos.
Além disso, a lei fixa que “é vedada a recusa de oferta de obra intelectual em formato acessível à pessoa com deficiência, sob qualquer argumento, inclusive sob a alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual”.
Ainda na área de livro e leitura, o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP) da Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB) do ministério atua para colocar em prática o conceito de “bibliotecas para todos”: inclusiva para pessoas com deficiência física, intelectual e de todas as idades, por meio do projeto Acessibilidade em Bibliotecas Públicas. Em andamento há cerca de dois anos, o projeto pretende ampliar e qualificar a acessibilidade em 10 bibliotecas públicas nas cinco regiões brasileiras. A meta da diretoria é formar ao menos uma biblioteca-modelo em cada um dos 26 estados e no Distrito Federal.
Outro exemplo de atuação na área ocorre na Fundação Biblioteca Nacional, entidade vinculada ao MinC. Desde 2008, eles contam com o projeto Biblioteca Acessível, que auxilia portadores de deficiência visual e idosos na realização de pesquisas nos acervos físico e digital da Biblioteca Nacional (BN), de segunda a sexta-feira, das 10h às 17h.
A BN formou seus técnicos para prestar o serviço de atendimento especializado e capacitação para auxílio aos usuários em equipamento como ampliadores de textos eletrônicos, leitores de livros autônomos, linhas Braille, folheadores automáticos de livros, teclados e mouses especiais, impressoras Braille e programas para leitura de textos com reconhecimento de voz.
Patrimônio e museus
Na área de patrimônio, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), entidade também vinculada ao MinC, disponibilizou em seu site para download gratuito o documento Mobilidade e Acessibilidade Urbana em Centros Históricos. O caderno técnico estabelece um conjunto de ações para áreas consagradas como patrimônio cultural organizarem seus espaços para possibilitar que pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida possam fazer uso deles, sem a descaracterização desses locais que preservam a história e a arquitetura de determinada época.
O Museu Histórico Nacional, administrado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), entidade vinculada ao ministério, foi o primeiro do Brasil a oferecer guia multimídia com linguagem em Libras para deficientes auditivos. Além de promoverem obras para permitir a locomoção e acesso para cadeirantes e idosos, eles realizam o programa Museu para Todos, que leva exposições itinerantes para um público que não pode vir ao museu, como presidiários.
Até 30 de outubro de 2016, o museu abriga a exposição Diálogo no Escuro, uma mostra multissensorial que desafia o público a conhecer o mundo sem enxergar. Depois de passar por 39 países, a exposição chegou ao Rio de Janeiro propondo a experimentação de aromas, sons, ventos, temperaturas e texturas pensadas exclusivamente para que a cidade pudesse ser sentida de outra maneira.
Conceito
Quando falamos em pessoas com algum tipo de deficiência, nos referimos a quase um quarto da população brasileira. Segundo o Censo Demográfico de 2010, são mais de 45 milhões de pessoas que possuem dificuldades em enxergar, ouvir, locomover-se ou que apresentem deficiência mental ou intelectual.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivem com alguma forma de deficiência, o que corresponde a cerca de 15% da população mundial, com base em estimativas de 2010. A perspectiva da organização é o aumento desse número, em especial com as dificuldades que podem advir do envelhecimento da população mundial.
No entanto, o que é comum nas reivindicações das pessoas é que elas possam se sentir integradas à sociedade e possam ler livros, assistir a filmes e peças e conhecer equipamentos culturais com igualdade de oportunidades com quem não têm deficiências.
“A pessoa não precisa se sentir destacada no grupo. Não é destacar. É somar. Unir. Trazer para perto. Nada melhor do que a pessoa com deficiência para poder argumentar. Leve uma pessoa cega, surda, pergunte se o que você fez está funcionando. Tem quem prefira audiodescrição, a peça tátil. Há essas particularidades. O importante é oferecer o máximo de técnicas possível para abranger mais gente da melhor maneira possível”, defende Renata Silencio.
Camila Campanerut
Assessoria de Comunicação
Fonte: Ministério da Cultura.