Brasil trata pessoa com deficiência como doente, diz ONU

Durante reunião em Genebra, Organização das Nações Unidas criticou modelo assistencialista brasileiro e ressaltou que o País ignora os direitos básicos do cidadão com deficiência e seu papel na sociedade. A reportagem foi cedida especialmente ao blog Vencer Limites pelo jornalista Jamil Chade.

Clique na imagem para assistir ao vídeo. Foto: Fernando Pereira/Secom/PMSP

Reportagem cedida especialmente ao blog Vencer Limites pelo jornalista Jamil Chade.

A Organização das Nações Unidas (ONU) alerta que o governo brasileiro ainda lida com pessoas com deficiência por meio de políticas assistencialistas, e não na perspectiva de direitos humanos. A entidade examina pela primeira vez a situação no Brasil, indicou que o número de pessoas internadas em instituições ainda é elevada e que não existem medidas suficientes para que uma pessoa com deficiência possa viver de forma autônoma. A avaliação ocorreu dentro do mecanismo do Comitê dos Direitos de Pessoas com Deficiências, reunido desde ontem, e que analisa todos os países.

“As políticas e leis no Brasil parecem presas no modelo médico da deficiência”, afirmou Theresia Degener, relatora do Comitê. “Aparentemente, o modelo de direitos humanos dos deficientes não tem sido adotado até agora”, criticou.

Entre os especialistas, o modelo médico da deficiência considera a questão como uma doença, ignorando o papel dessa pessoa na sociedade ou seus direitos. O modelo é considerado como ultrapassado e tem base em políticas assistencialistas. “O Brasil tem mostrado progresso. Mas ainda não é suficiente”, alertou Degerener.

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Theresia também alerta para a questão da tutela e do fato de que poucos grupos de pessoas com deficiência têm sido consultados na elaboração de leis. Cobra, ainda, uma campanha de conscientização da população sobre a questão e desafios enfrentados por esses cidadãos.

Outro problema é o grau de institucionalização. Theresia admite que existe uma queda no número de pessoas internadas em instituições. Mas o volume total ainda seria elevado. “Muitas pessoas ainda estão detidas na base da deficiência e muitos são forçados a viver em instituições ou com membros de suas famílias por que não existem serviços para garantir uma vida independente nem programas de assistência pessoal” declarou. Cerca de 11 mil pessoas, contando apenas aquelas com deficiência física, estariam em instituições, segundo a ONU.

A relatora ainda apontou que tem recebido dezenas de acusações de tortura em alguns desses centros e o próprio governo admitiu que, entre 2011 e 2014, mais de 31 mil processos foram abertos por violações contra pessoas com deficiência.

Pepe Vargas, ministro de Direitos Humanos e que defendeu a posição do governo, declarou em Genebra que o Brasil está dando “largos passos para sair do assistencialismo”. Ele admite que “muito precisa ser feito para garantir os direitos” das pessoas com deficiência, mas garante que, nos próximos anos, o Brasil irá superar o modelo assistencialista.

O ministro ainda apresentou uma série de leis criadas nos últimos anos para garantir direitos às pessoas com deficiência, entre eles o acesso a transporte, habitação, nas comunicações e mesmo na Internet.

Vargas acredita que existe “uma confusão” por parte da relatora da ONU e insiste que a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) mudou no

‘A Acessibilidade’ (The Accessibility). Imagem: Reprodução

Brasil. “Temos uma lei que prevê uma substituição do modelo”, declarou. Segundo ele, não existe mais a situação de manicômios no País e a mudança está ocorrendo, inclusive para garantir benefícios sociais no Ministério da Previdência.

Para a perita da ONU Silvia Chang, porém, as informações recebidas pela entidade indicam que a institucionalização de cidadãos com deficiência é ainda permitida, sem o consentimento da pessoa.

Críticas – A sociedade civil também apresentou um informe denunciando problemas no País. Segundo o documento, uma

pessoa com deficiência no Brasil ainda vive com sérias dificuldades para ter acesso aos mesmos locais que o restante da população, seja por falta de infraestrutura adequada ou por falta de treinamento de professores, motoristas e gestores.

“A falta de acesso tem sido a maior barreira a ser superada no Brasil”, alertou o informe apresentado pela Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (Abraça), a Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência do Brasil (FCD), o Instituto Baresi e a Rede Brasileira do Movimento de Vida Independente, entre outras.

Uma lei de 2000 estabelecia até 2010 para que todo o transporte público fosse adaptado. “Mas muitas empresas ainda não cumprem a lei”, acusaram as entidades. Ônibus interestatais e muitas empresas de transporte urbano ainda não teriam instalado elevadores para cadeiras de roda. Motoristas não foram instruídos a operar o sistema, quando existe, e não são poucos os casos de ônibus de linhas urbanas que “aceleram quando uma pessoas com deficiência está em um ponto”.

Segundo as entidades, o governo tem feito esforços para adaptar os aeroportos, mas o mesmo compromisso não é visto com metrôs, trens e outros transportes. Os edifícios públicos teriam de ter sido adaptados até 2009. “Mas muitos ainda não estão”, alerta o documento.

Um dos peritos da ONU, Stig Langvad, relatou como ele mesmo sofreu para circular pelo Rio de Janeiro, no ano de 2000. “Há 15 anos, eu estive no Brasil e não havia ônibus, não havia metrô adequado, não havia hotéis”, contou. Ele relatou como tentou ir ao estádio do Maracanã e teve de retornar. Também contou que fez um passeio pelo centro da cidade, mas não conseguiu entrar em nenhum lugar. A representação do governo garantiu que muito mudou desde então. “Se melhorou tanto, porque não me convida para ver?”, cobrou o perito.

Outros peritos da ONU, como Munthian Buntan e Damjian Tatic, também cobraram explicações, alertando que as leis podem existir. Mas não haveria garantias de que elas têm sido adotadas.

Com mais de 46 milhões de pessoas com deficiências no Brasil, as ONGs também apontam que nem mesmo as construtoras têm erguido os novos apartamentos dentro dos padrões exigidos pela lei para garantir a circulação de cadeiras de roda ou acesso aos banheiros. Nos centros de saúde, a questão do acesso é ainda um obstáculo. Um levantamento apresentado à ONU aponta que, de 241 unidades de saúde avaliadas em sete Estados, 60% delas não estavam adequadas a receber pessoas com deficiência.

As políticas de emprego tiveram certos avanços, mas enquanto o Brasil gerou 6,5 milhões de postos de trabalho entre 2007 e 2010, 42 mil empregos para pessoas com deficiência foram fechados. Nas escolas, a falta de assistência especializada é a barreira. Em 2008, 93 mil estudantes com deficiência foram inscritos na rede pública. Em 2014, esse número caiu para 61 mil.

Os peritos da ONU também alertam para a situação das crianças. Para Hyung Kim, crianças brasileiras com deficiências ainda têm problemas para ter acesso a escolas. Para Diana Kingston, os dados recebidos pela ONU mostram que “muitas crianças ainda vivem em instituições”. Para o governo, o acesso à escola avança, mas ainda tem desafios para garantir a universalização.

Por LUIZ ALEXANDRE SOUZA VENTURA

Fonte: Estadão.