BETH, Cravo e Canela



Ao observar uma das fotos da Beth que estava a minha frente, tive a percepção nítida de que ela era a encarnação viva da Gabriela, personagem emblemática do escritor Jorge Amado, com sua pele morena, cor do Brasil; seus olhos da cor do mel, ao mesmo tempo doces e selvagens, e lábios carnudos de nossa negritude ancestral.

Como conter toda esta história, dentro de um corpo delineado pela tetraplegia, mas capaz de voar por meio da dança, conquistando a mobilidade e a flexibilidade de movimentos, representação da liberdade que ela sempre perseguiu? Corpo este que sustentou a pessoa que ela sempre foi, sensual e parceira do prazer, buscando a diversidade do mundo sensorial em sua pele, mesmo que parcialmente anestesiada. E se propondo a uma atitude de desafio e ousadia em seus contatos e maneiras de viver o mundo. No fundo, nunca deixou de exercer em si mesma, a determinação e a liberdade de pensar e agir.

São tantas as formas de conhecer e compreender a Beth, esta pessoa com quem tive uma longa e significativa convivência, tanto pessoal, quanto profissional. Neste particular, creio ser privilegiada por ter sempre trabalhado em instituições ou organizações que ao mesmo tempo foram fonte de prazer e encontro com pessoas da mais alta competência profissional e valores humanos inquestionáveis, que me proporcionaram amizades sinceras, duradouras e significativas.

Tive a Beth a meu lado, em vários Cursos que desenvolvemos e administramos em conjunto, nos quais ela sempre acrescentou seu lado simples e direto para aproximar-se dos outros. Era sua capacidade de estabelecer contatos humanos dentro de sua diversidade, estabelecendo uma identidade e empatia capaz de atingir a pessoa em sua singularidade. Ela tanto podia conviver com os mais humildes e simples das comunidades, como adorava frequentar os locais mais populares, procurando o prazer da música e o encontro com o “povão”. Ao mesmo tempo era sofisticada e profunda em seus pensamentos, procurando transmitir um lado mais conflitivo e verdadeiro da condição humana. Tinha a capacidade em exercer o contraditório dentro de si mesma, e expressar suas emoções de forma sensível e delicada, ao mesmo tempo em que era forte e corajosa em suas manifestações.

Carismática em sua essência, foi a inspiração para muitas pessoas em perceber e encontrar caminhos próprios para uma reestruturação corporal e emocional frente a uma nova condição física.

O lado da Beth mais criativo e selvagem, eu diria, pela maneira corajosa e ousada em enfrentar novos contatos e desafios, fez dela, para mim, o paradigma da liberdade.

É esta a imagem que me ficou da Beth e a que desejo manter dentro de mim, como fonte de mobilidade e expressão.

Nos últimos tempos, a Beth passou por grandes transformações corporais e emocionais, que não a impediram de continuar exercendo compromissos e atuações pessoais e profissionais. Mas aos poucos, foi sendo tomada pelo sofrimento por um corpo que lhe dava limites, sem poupá-la da limitação, que ela sempre defendeu como uma possibilidade e não uma prisão, no enunciado que ela criou e que faz parte emblemática do CVI-Rio: Sua limitação não é o seu limite.

Ela foi levada inesperadamente, pelo vento que ainda a faz flutuar e alcançar a mobilidade que sempre buscou pela dança.

Fica a certeza que ela está entrando numa dimensão onde certamente poderá encontrar o caminho da libertação, como sempre desejou e procurou em vida.

Por Lilia Martins