Baú de Memórias de Sheila Salgado

Desde ontem, quando Renata, sempre super ligada, enviou para a equipe do CVI-Rio uma sequência de fotos da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, minha mente acelerou…

Estou fora da cidade sem tevê há mais de um ano e nem sabia que esta festa Olímpica finalmente aconteceria. Muitas lembranças maravilhosas estão inquietando meus pensamentos, meus sentimentos. Fiquei por muito tempo imaginando a crônica maravilhosa que nosso querido Zé Carlos escreveria diante da super sacada dos japoneses quando convidaram um paratleta para participar da cerimônia de abertura e acenderia a Tocha Olímpica. Este foi um sonho de muitos amigos: de estar juntos, pois sabíamos da impossibilidade dos dois eventos acontecerem ao mesmo tempo. Sim, a Paralimpíada tem muitas provas de cada modalidade devido a classificação. Como minha mente não conseguiu mais se aquietar, resolvi escrever passagens históricas das quais vivenciei.

Os Jogos Paralímpicos nasceram de um sonho de Sir Luwing Guttman. Ele era um neurocirurgião alemão que durante a Segunda Guerra teve que se refugiar na Inglaterra, pois era judeu. Lá fora convidado para assumir um “asilo” de pessoas que tiveram lesão medular. Diferente da Primeira Guerra, esta, devido aos ataques aéreos, não feriram apenas soldados que estavam no front.

O cenário era de total desesperança: jovens, homens, mulheres eram cuidados esperando o dia em que a morte trouxesse o fim de tanto sofrimento. E o Dr Guttman, inconformado com esse triste cenário, se debruçou integralmente tentando dar alguma qualidade de vida para aquelas pessoas. Foi assim que ele descobriu muitos cuidados específicos para manejar com a lesão medular, fundando o primeiro Centro de Lesão Medular do mundo: o Stoke Mandeville.

Ainda no final de 1945, introduziu algumas atividades recreativas, visando preencher os longos dias, o resultado foi surpreendente! Ele também inseriu outras atividades pensando em melhorar a condição física. Pouco a pouco, o clima foi se tornando mais alegre. Aquelas pessoas começaram a se divertir novamente e o resultado foi tão maravilhoso que Dr Guttman teve um sonho. Sonhou que grupos de paraplégicos, amputados de vários hospitais na Europa estavam competindo. O sonho foi tão real e tão inspirador que ele começou a estimular seu grupo. Cada dia novas atividades eram oferecidas.

Tudo iniciou com arco e flecha, bola ao cesto – não era ainda o basquete -, e tinha uma terceira modalidade que não lembro no momento. O fato é que ainda em 1946, aconteceu o primeiro encontro entre dois hospitais para uma pequena competição, e assim o sonho se tornou realidade. Em 1960, logo após os Jogos Olímpicos de Roma, foi a primeira demonstração com a participação de 400 atletas de 23 delegações de pessoas com deficiência física. Aos poucos, o que era um grande encontro em torno de alguns esportes se tornou esporte de alto nível.

Desde então, os Jogos Paralímpicos aconteceram logo após aos Jogos Olímpicos. A realidade era bastante diferente, nem sempre os Jogos Paralímpicos aconteciam no país que sediava os Jogos Olímpicos. A primeira participação do Brasil, ainda bem discreta em 1972, foi nos Jogos de Heidelberg na Alemanha. Em 1976 nos Jogos de Toronto, meu grande amigo José Gosmes Blanco esteve no livro desta Paralimpíada arremessando disco.

Os sete condenados

Participei pela primeira vez dos Jogos Internacionais de Stoke Mandeville em 1981. Não tive a honra de conhecer Sir Luwing Guttman que faleceu em março de 1980 antes dos Jogos Paralímpicos, sediado pela Holanda, pois a Rússia não o realizou. O Brasil compareceu com um time de basquete que não tinha banco, mas lá estavam Celso Lima, Zé Carlos de Morais, Robertão, Luiz Carlos, dentre outros. E eles se autodenominavam de os sete condenados.

Com a ausência do Sir Guttman, muitas modalidades para os tetraplégicos foram conquistadas. Como médico e fundador dessa maravilha, ele não permitia, pois achava que era grande risco determinadas modalidades, aqui foi um grande marco conquistado pelas pessoas com deficiência desafiando mitos sobre suas capacidades. Ainda nessa Paralimpíada, surgiram as primeiras cadeiras de rodas específicas para alguns esportes (eram monobloco e customizada para o corpo da pessoa), e elas mudaram a vida fora das competições também. As pessoas tetraplégicas ganharam uma independência e agilidade na locomoção que nem sonhavam.

Em 1984, em minha primeira Paralimpíada, por questões que nunca soubemos a verdade, os EUA não realizaram os Jogos Paralímpicos por uma decisão de última hora, então, os grupos foram separados por deficiência: os cegos competiram nos EUA e as pessoas com deficiência física competiram em Stoke Mandeville, pois lá tinha toda instalação com acessibilidade e disponibilidade. Foi nessa edição que a proposta com a mudança de classificação médica para funcional foi feita. Momento muito tenso. Claro que a mudança seria para a próxima edição em que tivemos a honra de ter o Zé Carlos de Morais como chefe de delegação.

Em 1988, finalmente, a classificação funcional do basquete aconteceu paralelamente para se provar como ela tornaria mais justa a competição. Foi um trabalho árduo, eu estava compondo o grupo numa tarefa intensa o dia todo coordenada por Bernard Courbariaux. Esta edição foi a primeira com os estádios cheios o dia todo. Felizmente, não entendíamos o que eles cantavam, pois eram grupos de religiosos e torciam para os dois lados, mas tivemos o sonho realizado: audiência repleta! O Brasil estava com uma grande delegação. Na cerimonia de abertura, eu estava com a equipe de cegos do nosso país e fiquei maravilhada, tentando ver a cerimônia através dos meus olhos, mas capturada pela audiodescrição dos técnicos dos cegos. Que maravilha! Assisti dois espetáculos. Fiquei encantada!

Cenas marcantes

Durante os jogos, cenas incríveis pude presenciar. Conviver com a diferença é muitas vezes super desafiante. No refeitório, enorme, uma fartura, assisti uma fila de atletas cegos deixar um “tetra” que vinha todo independente equilibrando sua bandeja no colo. Desesperado, ele tentava fugir da fila indiana de cegos que vinham cantando felizes. Pois é, não deu, foi bandeja pra lá, cego pro chão e o atleta tetraplégico enfurecido com o acidente. Realmente, o que facilita um cadeirante pode até matar um cego e vice-versa. A calçada perfeita para alguém com limitação na mobilidade, por exemplo, pode deixar um cego sem referência que a calçada acabou.

Na cerimônia de encerramento todos os países entraram livres ao som da música da Xuxa chamada Ilariê e cantada pelo Claudionor, nosso atleta de ciclismo da época. O Brasil trouxe 28 medalhas, quando era noticiado, era apenas uma nota de rodapé de algum jornal de grande circulação.

Até que enfim, acessibilidade!

Era 1992 em Barcelona que pela primeira vez os ônibus eram acessíveis, sem a loucura de rampa ou elevador para embarcar. Que maravilha, parecia um sonho! Barcelona arrasou! Esteira a cada 50m na praia levando até a água, na rua acesso maravilhoso deixando Barcelona ainda mais charmosa. Dessa vez, fui como classificadora internacional, o que me impedia circular nos aposentos da minha equipe. Meu basquete não se classificou, mas eu tinha muitos amigos de todas as modalidades. Foi a primeira vez que tivemos a audiência cheia por pessoas loucas pelo esporte. As entradas foram vendidas pela primeira vez e do lado de fora do estádio ficavam muitos jovens gritando, torcendo, querendo entrar e não cabia. Foi na semifinal que a Espanha foi derrotada pela Inglaterra, se não me engano na prorrogação de um jogo duríssimo. Um espetáculo!

O juiz marcou justamente uma falta do jogador mais famoso da equipe espanhola e foi assim que foram derrotados. Que loucura! Uma gritaria que horas depois ainda tínhamos zumbido nos ouvidos. Levamos mais de uma hora, nós os classificadores, para sair do estádio. O juiz que marcou a falta levou uma “bolsada” no rosto da segurança do estádio. Era outro sonho: aquela torcida apaixonada, aquela multidão para assistir todos os jogos, todos os dias. Saímos de Barcelona com o coração cheio de esperança de um mundo lindo para todos.

Em 1996 Atlanta precisava superar Barcelona. A expectativa do mundo era grande, seria muito difícil, eles não conseguiram. O basquete em cadeira de rodas fazia 50 anos, foi feita uma linda festa e teve o lançamento do livro maravilhoso da história do basquete, esforço de muitos amigos, entre eles: Horst Strokendall, Armand Thibout, Phill Craven, Bernard Courbariaux e outros. Nessa Paralimpíada, eu e meu grande amigo Raniero Bassi, um suíço que foi fundamental para desenvolver o basquete em cadeira de rodas na América do Sul, éramos visitantes, não podíamos perder as “Bodas de Ouro” do nosso basquete. Foi nesse ano também que o tênis de quadra estreou, e Zé Carlos estava lá realizando seu sonho. Chegou a hora de me despedir dos amigos internacionais, pois eu havia deixado o esporte.

Foi em Sidney, no ano de 2000, que o Brasil levou na equipe um grande grupo de jornalistas, e para nossa surpresa na tevê fechada no canal de esporte passavam os jogos o dia todo. Outro sonho concretizado, eu não acreditava que assistiria esse espetáculo nessa existência, liguei para antigos amigos pelo Brasil, emocionada, chorava de alegria de ver os jogos pela tevê, e assim, a cada edição, novas conquistas, até que vivemos a loucura de sediar os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Tive muito medo, pois conhecia a estrutura necessária.

Mais um sonho que se tornou realidade

O CVI-Rio esteve envolvido com vários projetos nos anos que antecederam. Por um esforço e desejo de Lília Martins que conseguimos nos envolver na preparação do pessoal dos hotéis e pontos turísticos para receber a família olímpica e paralímpica no Rio. Beth Caetano participou, não só desses projetos, como integrou a equipe de dança na abertura. Parecia um sonho! Sir Phill Craven fez um discurso belíssimo na abertura dos Jogos, calando rapidamente a audiência que vaiava quando ele agradeceu ao Governo Federal.

Phill dedicou sua vida ao esporte, ajudando muitos países a desenvolver o esporte adaptado, ele foi grandioso. Tenho certeza de que aqueles que tiveram a oportunidade de assistir essa festa nunca mais foi o mesmo. Que saudade dos meus amigos que não estão mais aqui entre nós, da vila olímpica, daquelas cenas inesquecíveis. Eu, Zé Carlos, Beth, Lília, Gabriela Zubelli e tantos amigos, tivemos a honra de participar do revezamento da Tocha Paralímpica. Muitos ex-atletas participaram das mesas de comentários esportivos na tevê e eu só pensava na “carinha” do Blanco se estivesse aqui entre nós.

E nessa semana, no Japão, outro sonho realizado: um paratleta participando da cerimônia da Tocha, momento muito importante. O Presidente da IPC (International Palympics Comite) é um brasileiro chamado Andrew Parsons. Vamos aguardar as cenas maravilhosas não só dos Jogos Olímpicos, mas também dos Paralímpicos. O esporte sempre transformou nosso olhar, nossa visão, desafiando os limites, tornando o sonho em realidade! O movimento é a vida e esta é um direito de todos!