Por José Carlos Morais
Entro no meu carro automático, comprado com isenção fiscal, adaptado com comandos manuais feitos no Brasil e consigo com alguma facilidade desmontar minha cadeira nacional, construída em monobloco, de alumínio, pesando 6 quilos e acomodá-la no banco de trás. Estaciono em uma vaga especial faço o movimento inverso, num espaço suficiente para armar minha cadeira e para ela me transfiro. Subo a rampa no meio fio rebaixado e na calçada me dirijo até o metrô. Lá um funcionário treinado me acompanha até a plataforma, aguarda comigo a chegada do trem e me alerta que na estação que pretendo descer haverá outro funcionário a minha espera. Entro no elevador na estação de destino e em poucos minutos alcanço a rua. Toco a minha cadeira até o Shopping, bem próximo da estação, e antes de entrar no cinema resolvo ir ao banheiro para evitar surpresas. O símbolo do acesso identifica o banheiro com portas largas e distribuição de barras que facilitam a sua utilização. Neste espaço confortável, consigo realizar uma higiene adequada e faço o meu cateterismo. No hall do cinema encontro minha amiga. Entramos, acomodo a cadeira de rodas, ao seu lado, no local marcado e desfruto da projeção.
Fácil não. Embora seja fictícia, essa cena é habitual em várias cidades brasileiras. Entremos na máquina do tempo para voltar ao ano de 1973. A cadeira de rodas, uma EJ de ferro, importada, pesando vinte quilos não tem como ser colocada no carro sozinho. Ainda mais num Fusca. Esse, para dirigir, precisa de uma adaptação manual importada, onde acelerar, frear e debrear são responsabilidade da minha mão direita, enquanto a esquerda fica exclusivamente no volante. Quando você acha uma vaga, corre o perigo de não conseguir entrar no carro na volta, pois sem vagas especiais, não temos aquele espaço extra para a cadeira. Para descer o meio fio procuramos uma rampa de garagem, cuja inclinação é inadequada. Mas é o que temos. Como ela não fica na esquina, vamos pelo cantinho da rua até a faixa de segurança para atravessar. Do outro lado, a mesma coisa. Transporte público acessível, nem pensar. Como não temos banheiros adaptados saímos de casa com um coletor de urina colocado na perna ligada ao pinto por um tubo, onde uma camisinha devidamente furada drena a urina. As mulheres não bebem água para evitar constrangimentos maiores ou apelam para as fraldas. Nada mais inconveniente. Temos que escolher um cinema acessível, pois como ficam na rua, alguns tem escada. Colocamos a cadeira de rodas no corredor e os mais safos se transferem para a poltrona da ponta. O funcionário guarda sua cadeira lá atrás e quando alguém quer entrar na estreita fila, estranha porque você é o único que não se levanta.
Uma pequena viagem ao passado, para matar a saudade dos tempos heróicos de enfrentar uma cidade que nunca pensou na pessoa com deficiência. Por outro lado, ao viajar no tempo podemos perceber o quanto foi importante a luta por um espaço que respeitasse a nossa dignidade. Ter participado junto com tantos amigos dessas conquistas talvez seja o grande diferencial do prazer de ser cadeirante numa época tão difícil. Cada triunfo era festejado com enorme entusiasmo. Isso fez do nosso grupo, pessoas especiais no sentido pleno e correto da palavra. Assim, desembocamos todos na criação do CVI-Rio e 30 anos depois vejo como muito está diferente e como tudo foi tão importante. Contudo, os mais jovens precisam compreender que embora não tenham participado desse histórico de pelejas, usufruem das vitórias. Cabe a eles nesse momento não deixar lacunas nos territórios conquistados, porque há muito a ser feito e principalmente há muito a ser preservado.